porta quebrada

Esta página não tem intenção de ser reconhecida pelos "outros", mas serve de alívio para o que nela tenta escrever, rabiscando sentidos e percepções. Fadada ao caos do tempo alienado dos compromissos, aqui a mão e o cérebro se faz silêncio e palavra que perfura até o chão da rotina, ou seja, aquilo que deveria ser e não é mais. Por isso, neste espaço não existe porta, pois está quebrada, arrebentada pela liberdade do interesse.

domingo, 2 de outubro de 2011

Portifólio da exclusão (Segunda Provocação)



Durante muitos anos as sociedades ocidentais acreditaram e ainda acreditam que instituições de abrigos com o foco para idosos, pessoas com deficiência, crianças “abandonadas” (afetivamente ou socialmente), fossem uma resposta adequada para constituir o direito à dignidade e à assistência integral. Porém, quando se instituiu este tipo de proposta pública ou privada se dividiu, neste esforço benéfico, a sociedade entre: os que produzem e tem algum tipo de utilidade cotidiana, e diga-se de passagem, estes são considerados os “normais” da história, ou melhor, os que são “sociáveis”, e outros que não se enquadram nos parâmetros de qualidade mínima exigida para receberem um título de “seres relacionáveis”, “produtivos” e consumidores conscientes. Estas duas últimas características “produtivos” e “consumidores”, são essenciais para entendermos a lógica de discussão aqui apresentada frente ao processo de categorização de seres-humanos, que resultará em tomadas de decisões exclusivas e excludentes escandalosas diante do primado dos direitos humanos. Com esta argumentação social, de dois grupos de seres humanos distintos, arquitetou-se e justificou-se grandes e pequenos depósitos de seres rotulados de “anormais”.

A sociedade como um todo, em especial os seus líderes empresariais, políticos e sociais, obviamente que se sensibilizam e se importam com estas “vidas incapacitadas” e o destinar das mesmas. Porém, desde que exista um limite saudável, ou seja, um lugar segregado do ritmo, funcionalidade e ambiente comum dos seres “normais”. Pois dentro da rotina da sociedade com suas distintas configurações de cidades, vilas, lugarejos e bairros, não são adequadas para tal inclusão cotidiana. A questão central é: criar um mundo a parte e que tenha o ritmo especial de todos os seres mencionados na introdução deste texto, para assim, preservar a ordem pública! Para explicitar de maneira mais concreta esta reflexão basta analisarmos os nossos ônibus públicos que não foram feitos para cadeirantes. Outro exemplo é caso exista um “louco” em qualquer espaço e que esteja quebrando a normalidade dos outros, é situação para a polícia ou internamento imediato em algum centro de habilitação - lugares distantes das cidades, ou em casas inseridas num bairro periférico, com muros tão altos que não se ouvi e nem percebe movimento algum de vida. Sem falar dos medicamentos “sossega leão”, aplicados na veia para tranqüilizá-los e deixa-los num estado mumificado, sem voz nem movimentos “estranhos”. Já os nossos semáforos não têm utilidade para as pessoas com deficiência visual. E o que falar da estrutura das cidades como um todo, não foram pensadas (se é que alguma cidade foi pensada) para crianças. Acrescentamos aqui as crianças diante desta categorização de “anormalidade”, porque não rotina são manuseadas feito objeto sem vida e sem capacidade de decisão (sem voz e sem argumento), conceito de “menorização”. Se alguém se sente agredido por esta afirmação comece a pensar no que fazemos com muitos temas que são habituais, sem o critério da análise e da crítica cotidiana. Somos esmagados por pré-conceitos herdados na genética de nossa história e cultura. Por isso, apresentamos este tema que historicamente não ousamos enxergar muito menos pensar de maneira pertinente e contundente.

Para aguçar esta reflexão: O que são as nossas creches e centros de educação infantil? Verdadeiros depósitos de seres em desenvolvimento, mas que ainda não tem a capacidade de produzir e consumir (pelo menos não de maneira consciente, ou seja, não escolhem o que querem. Mas seus pais sim, estes são os sociáveis). Nestes espaços se limite castrador, os movimentos das crianças (físico e metal) e o pior a capacidade de criar, são direcionados para um afazer mecânico e rubrificador de condutas e percepções. Aprender a ler o mundo se resume a apropriar-se mentalmente de signos de um alfabeto, que não ensina a ler o “sentimento do mundo”, como dizia Fernando Pessoa. Hoje uma criança gasta a maioria do seu tempo de desenvolvimento em espaços formais e instituídos pelos adultos, sem descobertas e novidades, pois a parede é a mesma, não se vê horizonte, o chão não muda e tem que se dedicar a abstração de conteúdos elaborados por outros. O principio da “descoberta” não existe intencionalmente, elemento tão intrínseco a natureza infantil. O hábito social de dizer que: “criança não tem que estar na rua, mas sim, em casa ou na escola...” com a desculpa da violência gritante e de outros fenômenos geradores de medos e castrações. Porém, o sintoma da violência deve ser analisado de outros pontos de vista, por exemplo como a falta de relação, de presença e freqüência em alguns espaços, que são esquecidos e abandonados pelos viventes dos territórios. Percebam que os lugares onde são redutos de qualquer tipo de situação “marginal” é porque foram esquecidos, tanto pelos moradores como pelos gestores públicos. Antes de se transformar em uma zona de perigo já era um lugar abandonado. Este fenômeno de desapropriação dos espaços é resultado de muitas outras questões em que os setores de segurança instituída não conseguem, nem imaginam respostas adequadas, por que desconhecem o contexto maior.

Enfim, as crianças vivem como joguetes de compreensões e decretos dos adultos. Não oportunizamos nem o direito de assegurar a liberdade e a oportunidade da relação saudável e educativa da rua para crianças. O problema não está na criança, mas na estrutura adultocêntrica que se armou em todas as cidades, ou seja, se estruturou um mecanismo “funcional”, em que carros e motocicletas são mais importantes que o caminhar natural das pessoas. Nossos becos estão abandonados, pois não se vê utilidade, um parque e uma grama não são lucrativos para a rotina capitalista, que mata o sentido de coletivo e de pertencimento. Falta tempo para arquitetarmos uma cidade mais justa e que tenha um nó de relações mais igualitárias? O ciclo do capitalismo não pergunta o que é prioridade, mas sim, o que é vendável. Não se vende nas lojas produtos coletivos, mas sim coisas que agradem momentamente um individuo, sempre insatisfeito pelo próximo objeto de consumo. Vivemos numa sociedade que não tem a capacidade do parar, contemplar e agir de maneira diferente e, por isto, consciente.

A partir desta realidade acima mencionada, o que falar de alguns abrigos, hoje intitulados de espaços de acolhimento? Assume-se provisoriamente uma situação de descaso social, e o pior, assume o papel da família e muitas vezes das comunidades, dos conhecidos e da representatividade devedora do próprio Estado. A tudo isto Zygmunt Bauman chamou isto de “Instituições Totais”. Ou seja, são entidades que assumem de maneira ilhada e total (por isso modal), todas as características que deveriam ser compartilhadas com outros atores em espaços cotidianos e lugares distintos e diversos.

Ao visitar um programa de Acolhimento num país vizinho, diversas preocupações e problemas rondavam a equipe técnica e o juizado local, que exigia uma resposta imediata da Organização responsável por esta modalidade. Uma das técnicas da rede local de proteção, assim falou: “Os jovens estão dando muitos problemas. Menina grávida. Outros não querem estudar, sem falar da questão das drogas. Não há conversa que atenda e nem terapia! Muitas coisas ruins e sem respostas favoráveis rondam neste acolhimento”. E assim junto com outras técnicos levantou temas e mais temas, situações e mais situações, chamadas de “problemas organizacionais”. A questão era: um universo de situações dentro de um espaço que foi construído e metodologicamente arquitetado para ser um refúgio de paz e de harmonia para seres com “problemas” (conceito muito utilizado para estes casos). Obviamente que esta compreensão alienante passou por cristalizações de interpretações históricas e culturais ao longo de muitos anos. Hermann Gmeiner, neste caso, o fundador deste modelo e organização, pensou nisso? Certamente que para sua época a necessidade era uma e a resposta estava acordada e sintonizada nesta condição.

Destarte, em muitos lugares e regiões pessoas tem vivenciado dramaticamente esta realidade: problemas e mais problemas são confortados e imaginados num espaço coletivo de acolhida. Ainda mais quando existe uma estrutura que tende a centralizar a rotina e a percepção de mundo destas crianças, adolescentes e jovens. Quando se centraliza intencionalmente uma vida, aquele que intenciona, no caso desta reflexão à Instituição, deve assumir o destinar desta vida. Eis aqui o problema da institucionalização, institui-se uma realidade, em que fora dela não há experiência, nem vida, por isso, nem futuro. Fora da instituição não há vida, ou seja, não há um ser capaz de responder sua própria autonomia. Eis o ciclo vicioso da dependência institucional. Isto é o produto das Instituições Totais. Porém, a questão é que na sociedade há gravidez, há namoro entre adolescentes, há uma epidemia de desmotivação por parte da juventude, há perdição da droga etc. Mas isto não é responsabilidade isolada e única de uma Organização, que presta um serviço total para a sociedade. Ao final desta escuta de lamúrias dos já citados técnicos relatei, para a juíza que mantinha uma atitude de exigir uma resposta apropriada e “mágica” de mim representante da Organização envolvida. Eis que assim respondi: “Obviamente senhora juíza, somos culpados por estas situações, porque engendramos um universo paralelo e assumimos o papel do Estado e da sociedade, como um projeto coletivo. Isolamos esta nossos “atendidos”, que antes de serem assim chamados são seres humanos parte de uma comunidade de vida. Compete a nós imediatamente mudar de estrutura e de metodologia, a nossa proposta é social e não de ficção em que acreditamos montar um cenário imaginário, em que o centro e o senso de realidade não passa de uma enganosa expectativa de que aqui é o lugar para se viver. Sabemos que somos um espaço de acolhimento, mas não um Estado paralelo, ou uma sociedade anexa a outra sociedade. Assumimos a responsabilidades de “situações-problemas” da sociedade como um todo. O problema não é organizacional, mas sim um problema de relações familiares e da própria sociedade como um espaço coletivo e comunitário: de professor com aluno, de policial com jovem, de postos de saúde com a população, de secretários de educação com secretários de urbanização etc. Está na hora de revermos nossos limites e nossas expectativas, pois ou nos sentimos parte de uma sociedade em que problemas atravessam e são neles que devem somar as nossas forças enquanto cidadãos, ou estaremos falando de um modelo falido, fadado a absurdos, crimes e mortes psicológicas e emocionais (...)”. Este desabafo foi como que um mea culpa histórica e uma convocação para mudança tanto das estratégias deste Programa, como para o posicionamento da Juíza representante da justiça do Estado.

Terminamos aqui como iniciamos esta reflexão, somos espertos em isolarmos aquilo que não sabemos conviver (na psicologia se fala do “não saber assumir o conteúdo vivenciado” e na sociologia “a exclusão do desfavorecido”), aquilo que é considerado como “problema” deve ser depositado em espaços e lugares, que representem um refúgio para os dois grupos sociais: para a “vítima”, aqui tem seus direitos básicos garantido, e para o ‘socorrente’, não preciso preocupar-me mais com esta situação, “o problema é de outros”. Creches, asilos, grandes espaços de acolhimento se observados a partir de uma ótica analítica nada mais são do que depósitos de seres humanos, renegados pela sua condição ou situação de vulnerabilidade. Porém, fecho aqui esta provocação: um “problema” é sinônimo de oportunidade e de resposta; é a matéria prima para a possibilidade de mudança.

Já revelava a lógica de uma pensador anônimo medieval que, a verdadeira mudança consiste em três grandes e profundas ousadias:

a) Atitude de mudança na mente (Percepção);
b) Atitude de mudança na prática cotidiana (Práxis);
c) Atitude de Mudança das estruturas (Flexibilidade);

Com estas atitudes propositivas e intencionais a sociedade atingiria um estado de autenticidade e justiça plena. Por isto, a palavra chave é mudar é preciso, comecemos pelas nossas concepções e assim por diante. Receita dada, saúde esperada, para a nossa humanidade!

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